quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Oito boas razões para ler ficção...sempre!


Ricardo Azevedo, conhecido por suas histórias infanto-juvenis e pesquisas sobre folclore, explica porque é importante o contato com a obra literária, além da didática
Texto: Marion Frank


"O livro é o outro, o contato com o outro, com outro pensamento e outra maneira de ver a vida", Ricardo Azevedo, escritor com 32 anos de carreira.
  
Ele mora em uma rua arborizada do Alto da Lapa, onde se ouve o canto dos passarinhos junto do latido dos cachorros, atmosfera incomum para São Paulo. Ricardo Azevedo tem o privilégio de trabalhar em casa - e como trabalha! Um dos mais profícuos escritores do mercado infantojuvenil, pesquisador de mão cheia da cultura popular, ele já escreveu mais de 100 títulos. E tem dois prontos para serem lançados no início de 2013: um romance ("ele se passa no Brasil colonial e é endereçado ao jovem adulto") e uma tese de doutorado, defendida em 2005 e finalmente transformada em livro ("é um estudo sobre o discurso popular a partir de letras de samba").

Paulistano nascido em 1949, casado e pai de três filhos, Ricardo, que se formou em Artes Plásticas, também é ilustrador, daí contar que "o primeiro livro que escrevi nasceu de uma imagem". Ele fala de "O peixe que podia cantar", história que mistura o racional com o emocional e que, no fundo, trata da cultura popular - um tipo de mistura, aliás, que permeia toda a ficção que Ricardo Azevedo já produziu ao longo de 32 anos de carreira. Sorriso fácil, bom papo, ele só perde a paciência ante alguns vícios mercadológicos, como o de classificar a leitura por faixas de idade, por exemplo. "Falar em livro infantil e livro adulto esconde a verdadeira questão, afinal, a criação de livros para uma determinada idade é algo típico do livro técnico, que tem seus assuntos divididos em partes a serem transmitidos ano a ano na escola", analisa. "Isso tem tudo a ver com currículos escolares e nada, com a literatura."

Sim, Ricardo Azevedo tem o que dizer sobre livros, sejam eles de ficção ou didáticos. "Todos os meus trabalhos, incluindo os de pesquisa popular, são retrato de quem eu sou", revela. Atenção, portanto, às ideias destacadas a seguir.

"Creio que o livro de literatura é o outro, o contato com a voz do outro, com outro pensamento e outra maneira de ver a vida."

Esse contato com o outro é fundamental para a vida de cada um de nós... Porque, se pensarmos em livros técnicos, o contato que acontece é apenas o de quem sabe com o de quem não sabe. O livro técnico é utilitário e pretende ensinar e dar informações. É sempre uma via de mão única que, além disso, procura compreender o mundo do ponto de vista técnico e científico, um discurso, portanto, de caráter impessoal e objetivo. Ora, isso não é suficiente! Seres humanos têm emoções, contradições e pontos de vista divergentes... E toda essa complexidade também precisa ser compartilhada. A literatura de ficção e a poesia podem propiciar esse compartilhamento e esse diálogo.

"Um texto de ficção nos faz avaliar as nossas emoções, as nossas paixões e ambiguidades - isso é fantástico!"

Ele serve mesmo de espelho por meio do qual nós nos identificamos uns com os outros. Ou não. Aliás, a não identificação é também muito importante, você reagir ao que lê dizendo, "nossa, jamais faria como esse personagem!" - como é bom poder avaliar a própria vida por meio do que acontece com outro camarada e, ainda por cima, por meio da ficção e da poesia!

"Quando, ao ler, se descobre que está entrando em contato com o outro e que esse outro está disposto a falar de questões complexas da vida concreta, quem lê vira leitor."

Acontece que a garotada, na escola, hoje é levada a acreditar que todos os livros são didáticos, ou seja, que eles servem apenas para trazer histórias técnicas, impessoais. São informações importantes, mas que não dão conta da vida que essa garotada leva no dia a dia... Agora, quando o aluno percebe que o livro que ele tem em mãos compartilha emoções, dúvidas e conflitos humanos, ele muda de comportamento - e passa a ser leitor. E isso, apesar de todo o apelo tecnológico dos dias de hoje. Vamos ser claros: a literatura sempre trata de conflitos humanos, incoerências, acasos e contradições, caso contrário nem haveria porque contar uma história... O livro técnico é o oposto disso, ele é sempre coerente, "limpo" e pretende que 100% dos seus leitores tenham uma mesma e única interpretação.

"A escola deveria abrir um pouco mais as opções de leitura, ela vê tudo de modo técnico e utilitário."

A escola apenas reflete o que pensa a sociedade. Os pais querem preferencialmente que os seus filhos tenham uma profissão e a escola fica presa a esse drama, afinal, os pais querem que os filhos leiam livros técnicos para passar no vestibular... Ora, seria bom que eles soubessem que, para formar um cidadão que tenha pensamento crítico, as informações técnicas são insuficientes. Há mil questões humanas, culturais, políticas, éticas, estéticas e psicológicas em jogo. É uma discussão que a sociedade precisa ter. Claro que é importante que os jovens tenham suas profissões, mas queremos formar pessoas passivas, meros técnicos consumidores, para manter o status quo ou pessoas criativas com pensamento crítico, capazes de discutir o status quo tendo em vista a construção de um futuro melhor? Outra coisa: como formar pessoas que saibam se expressar dando a elas apenas livros cujo discurso é objetivo e impessoal?

"Há uma distribuição de livros bem intensa em todo o País, o que não acontecia 15 anos atrás e é muito importante... Mas formar leitores não é apenas isso."

É preciso também que os adultos, sejam eles pais ou professores, saibam diferenciar com clareza os vários tipos de livro existentes, livros técnicos, religiosos, autoajuda, ficção e poesia etc. Sabemos que muitos professores não são leitores e aí, bem, a situação se complica... O pescador que nunca pescou vai querer ensinar a pescar? Fica difícil. E ler apenas livros técnicos não ajuda a formar cidadãos conscientes, expressivos e com pensamento crítico. Como não vivemos no paraíso, é preciso formar cidadãos que ajudem a construir pouco a pouco um futuro melhor para os que virão. Para tanto, é preciso pensamento crítico e ele jamais existirá sem a humanização proporcionada pela literatura e pelas artes.

"Em um mundo técnico, onde as informações são impessoais e utilitárias, o politicamente correto faz sentido."

E por uma simples razão: ele tem o dom de eliminar toda contradição e toda ambiguidade. No mundo idealizado do "politicamente correto", não existe maldade, nem corrupção, nem obesidade, nem gente cega... Também não existe racismo, por exemplo. É a institucionalização da hipocrisia e a idealização total de vida. Um motor, em tese, é uma estrutura sem contradição, cada peça está em seu lugar e, quando dá problema, troca-se a peça. Acontece que a vida não é assim, seres humanos não são motores! Lembro sempre de uma citação do neurologista Oliver Sacks, algo como "o ser humano é um organismo que luta para sobreviver em condições adversas." Eis o que precisamos compartilhar e nunca esquecer para que possamos manter nossa própria humanidade e relações respeitosas com o outro. Estamos todos nessa complexa viagem que é a vida.

"Um livro didático jamais me daria a liberdade de expressão de escrever que ´um livro parece uma garrafa com uma mensagem dentro, boiando no mar´."

De fato, a literatura para mim é um pouco isso. Mas note-se, trata-se sempre de uma mensagem subjetiva e, portanto, passível de diferentes interpretações.

"Um bom livro para criança é boa leitura para todo o mundo. Livros classificados para uma determinada idade são livros técnicos, que dividem o conhecimento para depois transmitir esses dados ao longo dos anos."

Para mim, a literatura infantil deve ser tratada sobre o fundo da unidade da literatura, ou seja, de forma que seja vista como caso particular vinculado aos problemas gerais da literatura. Trata-se de compreender o que de fato caracteriza a literatura e suas várias vertentes... O receptor é apenas um entre os muitos problemas em pauta. Hannah Arendt, pensadora alemã que eu respeito muito, nem costumava usar a palavra criança, mas, sim, referia-se aos "recém-chegados"! Dizia ela que cabe aos adultos responsáveis apresentar aos recém-chegados os homens e as culturas humanas... Creio que ela estava coberta de razão. O que fará um técnico consumidor, individualista, despolitizado e inculto com armas de destruição em massa, engenharia genética, nanotecnologia, inteligência artificial, computadores etc. nas mãos?

Sobre Ricardo Azevedo
Escritor e ilustrador paulista nascido em 1949, é autor de mais cem livros para crianças e jovens, entre eles Um homem no sótão, Lúcio vira bicho, Aula de carnaval e outros poemas, A hora do cachorro louco, Livro dos pontos de vista, Armazém do Folclore, Histórias de bobos, bocós, burraldos e paspalhões.

Tem livros publicados na Alemanha, Portugal, México, França e Holanda. Bacharel em Comunicação Visual pela Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Pesquisador na área de cultura popular. Professor convidado em cursos de especialização em Arte-Educação e Literatura. Tem dado palestras e escrito artigos, publicados em livros e revistas, abordando problemas do uso da literatura de ficção na escola. 


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